Unicamp desenvolve programa pioneiro para detecção e tratamento de icterícia.
 

Os resultados de um programa pioneiro para acompanhamento e tratamento de recém-nascidos com icterícia acabam de ser divulgados pela equipe de Neonatalogia do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp. A icterícia, caracterizada pela coloração amarelada da pele e das mucosas, é causada pelo acúmulo no sangue de bilirrubina, um pigmento biliar.

Normalmente, a bilirrubina é alterada pelo fígado do bebê para a sua eliminação. Se esta eliminação não é eficaz, surge o quadro de icterícia fisiológica (ou hiperbilirrubinemia), que em níveis elevados provoca lesões no sistema nervoso central. Danos cerebrais por icterícia - patologia denominada kernicterus - trazem seqüelas como surdez e problemas motores, e podem inclusive levar à morte.

O programa avaliou todos os recém-nascidos no Caism com peso acima de 2 quilos, idade gestacional mínima de 35 semanas e sem complicações no parto, no período de abril de 2001 a agosto de 2005. Do total de 11.259 crianças, 2.452 (21,8%) estavam ictéricas e justificaram acompanhamento ambulatorial. Oitenta precisaram ser reinternadas para tratamento com fototerapia.

Um artigo com esses resultados foi publicado na última edição do Jornal de Pediatria, importante periódico da área, acompanhado de editorial elogioso de um dos maiores especialistas em icterícia do mundo, o professor indiano Vinod Bhutani, da Stanford University School of Medicine.

Assinam o artigo os médicos Fernando Perazzini Facchini, Maria Aparecida Mezzacappa, Izilda Rodrigues Machado Rosa, Francisco Mezzacappa Filho, Abimael Aranha Netto e Sergio Tadeu Martins Marba, todos do Caism e professores da Faculdade de Ciências Médicas. 

Os elogios de Vinod Bhutani procedem, pois talvez não se encontre na literatura mundial um levantamento tão criterioso sobre a incidência de icterícia e em seus variados graus. Além disso, elaborou-se um programa eficaz e de baixo custo para detecção e prevenção de uma doença que vem sendo negligenciada por hospitais brasileiros e do exterior.

Alerta nos EUA

O professor Fernando Facchini, que coordena a equipe do Caism, explica que a icterícia na fase fisiológica é quase sempre benigna, havendo a normalização natural do nível de bilirrubina com o passar dos dias. "Mas existem doenças associadas que fazem com que a icterícia, quando presente, se manifeste com muito mais intensidade e provoque as lesões no sistema nervoso", adverte.

Segundo Facchini, o kernicterus, que parecia controlado devido aos avanços na neonatalogia, está ressurgindo nos últimos anos. "Os Estados Unidos registraram mais de 150 casos bem caracterizados (e que não representam o total). Isto acionou uma campanha de tolerância zero, até porque não há qualquer razão para que a criança sofra a lesão diante da facilidade de detecção e de tratamento da icterícia".

O professor da Unicamp observa que as lesões cerebrais por icterícia ressurgem num período em que os hospitais seguem a tendência mundial de encurtar ao máximo o tempo de internação dos pacientes. Um dos objetivos da medida é a redução do risco de infecções, mas o principal é a redução dos custos.

"As internações de pós-parto, que duravam em média cinco dias, hoje raramente passam de 48 horas. Nos Estados Unidos, chegam a durar menos que um dia: a mãe entra, dá à luz e sai com o bebê no colo. Os próprios americanos brincam que a maternidade virou um drive-thru", compara Fernando Facchini.

Esta alta hospitalar precoce cria um problema sério em relação à icterícia, cuja fase fisiológica coincide com a de adaptação do recém-nascido às condições fora do útero. Imperceptível no início, a icterícia tem seu pico no terceiro ou quarto dia de vida, quando a mãe já está em casa, sem supervisão médica.

"O que se faz é aconselhar a mãe a observar o bebê, mas mesmo quem possui experiência pode se enganar. Já presenciei episódios desagradáveis, como de uma mãe alertada pela vizinha que voltou com a criança apresentando níveis altíssimos de bilirrubina", recorda Facchini.

O programa

O debate sobre a tolerância zero nos EUA inspirou a equipe do Caism a criar uma estrutura ambulatorial de baixo custo para uma avaliação de qualidade. Enquanto a Academia Americana de Pediatria recomenda que todos os neonatos passem por exames laboratoriais - com métodos sofisticados, alto custo e resultados demorados -, a equipe da Unicamp tratou de adaptar um esquema para as condições brasileiras.

Antes da alta hospitalar, todos os recém-nascidos foram submetidos a exames clínicos. Um dos instrumentos utilizados é o icterômetro, com o qual se pressiona a ponta do nariz e se observa a cor da pele da região. Foi esta primeira avaliação que determinou a incidência de 21,8% de crianças com nível de bilirrubina necessitando de acompanhamento.

Dependendo do nível, as mães crianças foram aconselhadas a retornar em 24, 48 ou 72 horas para nova avaliação em um ambulatório simples, montado especificamente para este fim. O resultado mais comemorado por Fernando Facchini é o retorno de 87,2% das crianças. "Foi um sucesso, ainda mais se considerarmos que as mães são de camadas pobres e muitas moram em bairros distantes ou em outras cidades".

A volta de 2.140 do total de 2.452 bebês sob risco, na opinião do coordenador do programa, deve ser atribuída à capacidade de convencimento dos médicos. "Eles conscientizaram as mães de que a icterícia, apesar de potencialmente grave, é facilmente controlável. Portanto, a negligência não se justifica".

Nomograma

Para os exames de ambulatório, a equipe do Caism recorreu a um método elaborado por Vinod Bhutani que se tornou referência para classificar os graus de icterícia. É um nomograma (gráfico) que associa as horas de vida do recém-nascido com os níveis de bilirrubina, estabelecendo assim as faixas de risco de desenvolvimento de icterícias importantes.

Dentre as crianças encaminhadas para acompanhamento ambulatorial, 79,7% (1.706) foram liberadas após uma consulta, 11,4% retornaram uma segunda vez, 2,7% pela terceira vez, e apenas 0,8% por mais vezes. No correr do processo, 5,4% (115) desistiram do acompanhamento. Os 80 recém-nascidos reinternados - que poderiam desenvolver icterícias graves - responderam rapidamente ao tratamento com fototerapia.

A equipe de Neonatalogia do Caism continua acompanhando os recém-nascidos e estima-se que os casos detectados já cheguem a 4 mil, mas Facchini acredita que a incidência seja mantida perto dos 22%. "O importante é que mostramos ser possível reduzir significativamente os custos de detecção e acompanhamento dos casos de icterícia, sem que isso implique em aumento de risco para as crianças".

Novo projeto foca mutações genéticas

Em novo projeto aprovado pela Fapesp, a equipe do professor Fernando Facchini vai estudar duas mutações genéticas relacionadas com a icterícia. Uma delas é provocada pela deficiência de uma enzima denominada G6PD, associada à icterícia neonatal prolongada. Outra é a síndrome de Gilbert, uma icterícia intermitente juvenil.

"O objetivo é tentar estabelecer a prevalência dessas duas causas genéticas no Brasil e correlacioná-las com os casos de icterícia registrados no Caism. Queremos observar se em casos muito graves de icterícia, as crianças apresentam também a deficiência de G6PD, a síndrome de Gilbert, ou os dois problemas juntos. É um trabalho que deverá estar concluído até o final de 2008", informa Facchini.

Outra novidade diz respeito ao tratamento. Atualmente, o Caism recorre exclusivamente à fototerapia, dispondo de um equipamento com intensa capacidade de radiação: são 14 lâmpadas fluorescentes, metade acima e metade embaixo do bebê, que modificam a bilirrubina promovendo sua eliminação. Ali, a criança não fica mais do que 48 horas em tratamento.

Em breve, Fernando Facchini espera dispor de um equipamento para fototerapia com uma manta de fibra óptica chamada "blanket", que certamente facilitará o tratamento de alguns recém-nascidos. Ao invés de receber a projeção da luz, o bebê fica deitado sobre a manta. "O impedimento era o preço do produto importado, em torno de 25 mil reais. Mas estamos para receber um versão nacional, que chegamos a testar há alguns anos, mas que só agora teve uma aprovação provisória da Anvisa"

Texto: Luiz Sugimoto
Fonte: Jornal da Unicamp

Data da Publicação: 23/10/2007
 

 
 
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