Musculação - Ponto de Vista Aeróbio e Musculação
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Autor: Paulo Gentil
Graduado em Educação Física pela Universidade de Brasília.
Pós-graduado em Musculação e Treinamento de Força pela Gama Filho e em
Fisiologia do Exercício pela Veiga de Almeida.
Presidente do Gease
Coordenador de musculação da Academia Resistência Física
Treinador de força da triatleta Mariana Ohata
Treinador da equipe profissional do Gama de basquete |
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A busca pela ciência não
significa abandono do pensamento próprio nem mesmo da intuição, a leitura de um
artigo nada vale sem a visão crítica do leitor. Normalmente os autores de
artigos ou qualquer material para estudo não objetivam botar um ponto final na
discussão, mas sim alimentar a chama que impulsiona a obtenção dos
conhecimentos.
Com a discussão sobre aeróbios e musculação a
postura não deve ser diferente...
Há muita dúvida acerca do tema, basicamente
faz-se duas perguntas: "O aeróbio atrapalha a musculação?" ou "Qual a melhor
ordem das atividades: aeróbio antes ou depois?"
Interação entre aeróbio
e musculação
Existem diversos
estudos mostrando interferência negativa, e muitos outros mostrando interação
positiva ou neutra entre as atividades, como nosso objetivo aqui não é
confrontar referências e sim propor uma discussão, serão citados apenas um
exemplo de cada.
MCCARTHY et al (2002)
conduziram um estudo para verificar as alterações morfológicas e funcionais
decorrentes da interação entre treino de força e endurance. Os autores
mostraram-se favoráveis à tese de que aeróbios e musculação podem ser realizados
concomitantemente sem grandes prejuízos. No estudo, 30 homens sedentários eram
divididos aleatoriamente em três grupos que realizaram durante 10 semanas um dos
seguintes protocolos: treino de força, treino de endurance (bicicleta), treino
combinado (variando a ordem das atividades). Os resultados podem ser vistos na
tabela 1 e, de acordo com os autores, o treinamento combinado não interfere na
hipertrofia, sendo que uma provável interferência poderia ocorrer na capacidade
de exercer força máxima, devido a fatores neurais. Os autores ressaltam que as
diferenças entre os resultados dos estudos já publicados deve-se aos seus
desenhos, em especial à manipulação das variáveis como intensidade, volume,
freqüência...
Grupo |
Área do quadríceps |
Área das fibras tipo I |
Área das fibras tipo II |
Força |
Força |
+12% |
+24% |
+24% |
+14% |
Aeróbio |
+3% |
+4,5% |
X |
X |
Força e aeróbio |
+14% |
+13% |
+28% |
+7% |
Tabela 1: resultados do estudo
de McCarty et al (2002)
O poderoso William Kraemer
parece ser de opinião contrária. Em um estudo de 1995, Kraemer voltou sua
atenção para as respostas endócrinas e alterações no músculo esquelético. O
estudo do grupo liderado pelo inglês envolveu quatro grupos:
1) treino de força e endurance;
2) treino de força para tronco e membros superiores e endurance;
3) somente endurance;
4) somente treino de força.
O estudo envolveu militares com
mais de dois anos de treinamento. O treino de corrida era feito às 08:00 e a
musculação às 13:00, a corrida era variada entre treinos intervalados e
contínuos, e a musculação entre séries de 5 e 10 repetições. De acordo com os
resultados, houve pouca diferença na hipertrofia, porém houve alguns pontos
interessantes: as fibras tipo I tiveram prejuízo na hipertrofia e não houve
queda de força na mesa extensora, ao contrário do leg press.
Grupo |
Área das fibras tipo I |
Área das fibras tipo IIa |
Força
(leg press) |
Força
(extensora) |
Força |
+12% |
+24% |
+30% |
+34,4% |
Força + aeróbio |
-5% |
+21% |
+19,5% |
+34,4% |
Força MMSS+ aeróbio |
-5% |
-0,5% |
+9,5% |
+10,9% |
aeróbio |
-11% |
-7% |
+1,7% |
+3,1% |
Tabela 2: resultados do estudo
de KRAEMER et al, 1995.
Porém, se formos discutir a literatura
produzida sobre o tema, gastaríamos dezenas de páginas e não chegaríamos a lugar
algum, desta forma passaremos aos pontos que merecem um maior debate.
Tipo de atividade
Um fato que atrapalha muito a aplicação dos
estudos e orienta equivocadamente as conclusões é a defasada visão estadunidense
(que infelizmente continuamos a aplicar) que classifica as atividades
não-resistidas somente quanto ao sistema energético utilizado. Ao classificarmos
uma atividade como aeróbia (copiando os artigos em inglês), estamos perdendo um
ponto importante: o efeito neuromuscular.
Não interessa qual o sistema
energético foi utilizado, mas sim "como" o sistema nervoso acionou a musculatura
para gastar esta energia. Desta forma, verificamos que a atividade na bicicleta
interage de forma distinta da corrida, pois enquanto os estudos com corrida na
maior parte das vezes verificam alterações negativas, o ciclismo mostra um
padrão inconsistente, já o remo e o ergômetro de mão não parecem influenciar nos
ganhos de força (LEVERITT et al, 1999).
Ora, se considerarmos todas
como aeróbias ou anaeróbias, não acharíamos explicação para tal fenômeno, pois a
suposição de que a utilização das reservas glicolíticas seria a grande vilã não
se aplicaria, tendo em vista que diminuição nas reservas de glicogênio durante o
ciclismo seria similar ou até mesmo superior à na corrida, dentro de uma mesma
intensidade cardiovascular. A resposta para a questão provavelmente estaria na
qualificação e quantificação da atividade neural, que provavelmente seria
superior durante a corrida, devido ao seu componente pliométrico, que não é
encontrado no ciclismo.
Tipo de contração
Normalmente as inibições no ganho de força são
verificadas em velocidade maiores (LEVERITT et al, 1999), ou seja, os níveis de
força são prejudicados em contrações mais rápidas. Tal fato pode vir a reforçar
a importância do fator neural na interferência negativa citada acima.
Estado de treinamento:
Iniciantes sedentários parecem
sofrer menos com as possíveis interações negativas entre atividades do que
pessoas treinadas (LEVERITT et al, 1999). Por sua vez, atletas de endurance
normalmente obtêm melhores resultados (tanto em força quanto em endurance) com
treino combinado do que sedentários (BELL et al, 1997).
Volume
A soma dos trabalhos realizados
nas atividades parece ser um fator determinante no desenvolvimento da
incompatibilidade entre exercícios.
Um ponto bem abordado por
McCARTHY et al (2002) em sua discussão é o volume de treino, segundo uma revisão
feita pelos autores, os treinos com freqüências semanais ou volumes mais
elevados mostraram uma pior interação entre a musculação e demais atividades.
Para KRAEMER et al (1995), volumes altos de treinamento podem levar a alterações
endócrinas desfavoráveis, segundos os autores, no caso de treinamentos
concomitantes uma redução no volume total de treinamento seria necessária para
criar um ambiente anabólico.
Alterações endócrinas
Existe uma hipótese de que
alterações endócrinas, principalmente a liberação de cortisol, causadas por
outras atividades seria contraproducente ao processo de hipertrofia e ganho de
força. Aqui devemos ter em mente que há coisas que não são tão maléficas quanto
se acha e que não devemos levar tudo ao pé da letra. Um aumento transitório no
cortisol não significa a destruição imediata e irreversível do seu tecido
muscular, não há ao menos provas de que a pequena diferença existente com a
realização de uma outra atividade possa trazer prejuízos. Mesmo que o cortisol
fosse tão terrível, bastaria realizar uma refeição antes de iniciar e ao
terminar os treinos para impedir um pico deste corticóide.
O que KRAEMER mostra em seus
estudos é que uma exposição exagerada ao estresse pode levar a má adaptação ao
treino (KRAEMER et al, 1995), o que não significa dizer que uma aula de capoeira
o impedirá de hipertrofiar.
Isoformas de miosina (BIGARD
et al, 1996)
Quando uma fibra está se
regenerando, os impulsos nervosos que chegam determinam suas futuras
características, desta forma um treinamento de baixa intensidade poderia levar a
formação de isoformas de miosina lentas, com maior dificuldade de gerar força e
hipertrofiar. Porém este fato ainda não foi verificado em humanos.
Saturação dos mecanismos
de feedback e overtraining.
O corpo pode simplesmente não
dar conta de tanta atividade, tornando-se incapaz de lidar com tantos tipos de
estímulos e dificilmente adaptar-se-á adequadamente a todos eles. Nesse caso é
essencial o acompanhamento de um profissional competente para dosar as
atividades e programá-las de modo a evitar o conflito das adaptações.
Ordem das atividades
Tendo em vista que conciliar a
musculação com outras atividades não é nenhum pecado mortal desde que feito
corretamente, vem à tona uma pergunta que muito incomoda os praticantes de
atividade física: "o que deve vir primeiro: o aeróbio ou a musculação?". Porém,
se fossemos realmente pensar, creio que uma pergunta poderia acabar com esta
discussão antes mesmo de se pensar em realizar qualquer pesquisa complicada: por
que uma pessoa objetivando maximizar hipertrofia faria um treinamento aeróbio?
Se a resposta for: "para
emagrecer" ou "qualidade de vida" o texto termina por aqui e a recomendação é um
pouco mais de estudos, porém, caso a resposta esteja no fato da pessoa realmente
gostar de uma outra atividade que não a musculação, como artes marciais,
esportes coletivos, danças... aí sim poderíamos nos preocupar em procurar uma
maneira de otimizar o treino e responder a esta pergunta.
Na elaboração do programa de
treino, existem dois pontos hipotéticos a serem abordados:
Estado neural (LEPER et al, 2001).
As atividades antecedentes
poderiam dificultar a ativação das unidades motoras devido à fadiga prévia, o
que seria um problema para quem deseja levantar muito peso, como atletas de
força, potência ou quem utilize métodos tensionais.
Estado metabólico (TAKARADA
et al, 2000)
Há situações onde uma
predisposição ao acúmulo de metabólitos pode ser interessante para hipertrofia,
como na utilização de métodos essencialmente metabólicos, portanto a realização
prévia de outras atividades poderia até ser benéfica.
Considerações finais
Alimentação - deve ser adequada à nova
rotina de exercícios.
Volume - quando formos
realizar concomitantemente treinamento com pesos e outras atividades devemos
adequar o volume e a intensidade totais, tendo em mente que ambas atuam sobre o
mesmo sistema fisiológico e que haverá interação entre as adaptações de cada
uma. Esqueça a história de uma atividade é para o sistema cardiovascular e a
outra para o músculo-esquelético. Lembre-se que seus sistemas endócrino,
circulatório, imunológico, nervoso... trabalharão em todos os casos e pertencem
ao mesmo ser.
A ordem entre a musculação e
outras atividades - dependerá das características do treino, dependendo da
maneira como que se pretenda encontrar os fatores metabólicos locais e neurais.
Se o objetivo for ganhar
força - deve-se evitar atividades com componentes pliométricos de baixa
intensidade, como a corrida.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELL G, SYROTUIK D, SOCHA T,
ET AL. Effect of strength training and concurrent strength and endurance
training on strength, testosterone, and cortisol. J Strength Cond Res
1997; 11: 57-64
BIGARD XA, JANMOT C, MERINO
D, LIENHARD F, GUEZENNEC YC, D'ALBIS A. Endurance training affects myosin heavy
chain phenotype in regenerating fast-twitch muscle. J Appl Physiol
81(6):2658-2665, 1996
KRAEMER WJ, PATTON JF,
GORDON SE, HARMAN EA, DESCHENES MR, REYNOLDS K, NEWTON RU, TRIPLETT NT, DZIADOS
JE. Compatibility of high-intensity strength and endurance training on hormonal
and skeletal muscle adaptations. J Appl Physiol 78(3): 976-986, 1995.
LEPERS R, MILLET GY,
MAFFIULETTI NA. Effect of cycling cadence on contractile and neural propoerties
of knee extensors. Med Sci Sports Exerc vol.33 nº1 1882-1888, 2001
LEVERITT M, ABERNETHY PJ,
BARRY BK, LOGAN PA. Concurrent Strength and Endurance Training: A Review.
Sports Med 1999 Dec; 28 (6): 413-427
McCARTHY, J. P., M. A.
POZNIAK, and J. C. AGRE. Neuromuscular adaptations to concurrent strength and
endurance training. Med Sci. Sports Exerc., Vol. 34, No. 3, pp. 511-519, 2002.
TAKARADA Y, TAKAZAWA H, SATO
Y, TAKEBAYASHI S, TANAKYA, AND ISHII N. Effects of resistance exercise combined
with moderate vascular occlusion on muscular function in humans. J Appl Physiol
88: 2097-2106, 2000.
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