Musculação - Ponto de Vista Hipertrofia sarcoplasmática X miofibrilar
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Autor: Paulo Gentil
Graduado em Educação Física pela Universidade de Brasília.
Pós-graduado em Musculação e Treinamento de Força pela Gama Filho e em
Fisiologia do Exercício pela Veiga de Almeida.
Presidente do Gease
Autor do livro Bases Científicas do Treinamento de Hipertrofia
Coordenador de musculação da Academia Resistência Física
Treinador de força da triatleta Mariana Ohata
Treinador da equipe profissional do Gama de basquete |
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Existem basicamente dois tipos de hipertrofia:
sarcoplasmática e miofibrilar.
A primeira é muito vista em fisiculturistas e atletas que treinam com repetições
mais elevadas (maiores que 10), sendo uma de suas características básicas o
aumento de volume com pequeno aumento de força, desta forma fica claro que a
hipertrofia sarcoplasmática se manifesta em um aumento do líquido e demais
organelas do sarcoplasma, que não as miofibrilas. Já a hipertrofia miofibrilar é
mais vista em levantadores de peso, os quais treinam com repetições mais baixas
(normalmente abaixo de 6), este tipo de hipertrofia manifesta-se
morfologicamente como um aumento da densidade miofibrilar (aumento do tamanho do
volume das miofibrilas) sem um aumento correspondente das demais organelas,
desta forma há um ganho mais significativo de força.
Em princípio este parágrafo
está de acordo com o senso comum... mas onde se comprova que isso é verdade?
Onde se explica isso de forma convincente?
A divisão de hipertrofia em
dois tipos é um dogma tão antigo e repetido que já é aceito como verdade
absoluta, porém esta visão simplista não encontra fundamentos e em grande parte
de suas bases colide fortemente com as descobertas e conceitos científicos
atuais.
Densidade de organelas
Pesquisadores da Universidade
de McMaster (Canadá) realizaram um estudo para verificar as alterações nas
fibras musculares em resposta a diferentes tipos de treino. A amostra era
composta por 4 grupos: atletas de força (levantadores de peso e
fisiculturistas), atletas de endurance (maratonistas), pessoas ativas (esportes
recreativos) e sedentários, a análise envolveu tanto fibras tipo I quanto tipo
II do tríceps sural. De acordo com os resultados as fibras musculares eram 2,5-
1,7- e 1,6 vezes maiores em atletas de força, atletas de endurance e pessoas
ativas, respectivamente, em relação ao grupo controle. Apesar desta grande
diferença de tamanho, os volumes relativos do reticulo sarcoplasmático,
sarcoplasma e miofibrilas eram iguais em todos os grupos e entre os dois tipos
de fibra. De todas as organelas estudadas a única que mostrou ter sua quantidade
relativa alterada foi a mitocôndria. Ou seja, independente da fibra muscular ser
de um atleta de força ou endurance, independente das fibras serem tipo I ou tipo
II, todas elas possuíam cerca de 81% de densidade miofibrilar e 11% de volume de
líquido sarcoplasmático. Ora, se a suposição é que o treino de força com cargas
elevadas aumente a densidade miofibrilar e reduza o volume de líquido
sarcoplasmático, seria de se esperar que os atletas de endurance possuíssem
densidade miofibrilar reduzida e maior volume relativo líquido, assim como
poderia se esperar que esta relação fosse diferente entre os dois tipos de
fibra, porém nenhuma das suposições se confirmou.
Músculo cardíaco
A diferença na alteração da
densidade miofibrilar é comumente verificada em corações de animais (MEDUGORAC,
1976), mas mesmo nesses casos ainda há controvérsias, com alguns estudos
verificando o contrário (MATTFELDT et al, 1986; EVERETT et al 1975). A diferença
pode estar no protocolo empregado, pois a maioria dos estudos que verificaram
alterações nas densidades dos componentes ultraestrutturais induziram condições
patológicas ou foram feitos em corações com degenerações patológicas (FITZL et
al, 1998), enquanto os outros utilizaram um programa de exercícios mais
equilibrado.
A ocorrência de uma
"hipertrofia sarcoplasmática" como condição patológica também foi verificada em
corações humanos hipertrofiados em razão de uma patologia na válvula da aorta,
onde constatou-se que as células destas pessoas possuíam menor densidade
miofibrilar e maior volume de liquido sarcoplasmático (SCHAPER et al, 1981)
Estudos longitudinais parecem
corroborar com os resultados do grupo de ALWAY. Em 1986 BRZANK & PIEPER
submeteram um grupo de estudantes a 5 semanas de treinamento de força explosiva,
obtendo hipertrofia das fibras tipo I (20%) e tipo II (24%). Porém os autores
verificaram que o aumento da secção transversa não é relacionado a nenhuma
mudança na proporção dos volumes dos componentes celulares (miofibrilas e
sarcoplasma). Estes autores inclusive fazem uma afirmação controversa: "ao
contrário de atletas de endurance e pessoas não treinadas, os atletas de
potência mostram maiores valores de densidade de volume sarcoplasmático em suas
fibras musculares", ou seja, justamente o contrário do que se prega.
WANG et al (1993) realizaram um
estudo mais longo que o anterior. Nesta pesquisa se utilizou um treino de força
com altas repetições por 18 semanas e obteve-se aumento tanto do volume absoluto
das miofibrilas quanto do volume intermiofibrilar sem, no entanto, ocorrerem
alterações nos seus volumes relativos, levando os autores a concluir que o
treino de repetições elevadas ocasiona um aumento dos componentes da fibra
muscular proporcional ao aumento da própria fibra.
Existe um estudo produzido por
pesquisadores da Universidade McMaster (Canadá) que por vezes é citado como base
para a diferenciação da hipertrofia em dois tipos. Nesta pesquisa comparou-se
amostras retiradas do tríceps braquial de um grupo de atletas que possuíam
elevados níveis de hipertrofia (fisiculturistas e levantadores de peso) com
pessoas que praticavam musculação há 6 meses. De acordo com os resultados, o
volume miofibrilar era significativamente menor (73,2% em comparação com 82,5%)
e o volume citoplasmático maior (24,1% contra 14,8%) em atletas de força do que
pessoas que treinam há 6 meses.
Porém há um pequeno detalhe
nesta pesquisa: dos sete atletas da amostra, seis afirmaram estar usando ou
terem usado esteróides anabólicos androgênicos regularmente, enquanto ninguém do
grupo controle o fazia. Neste estudo os autores ficaram surpresos com
"anormalidades" como: grande número de núcleos no centro da célula (os núcleos
normalmente ficam na periferia), proliferação de tecido gorduroso e aumento
anormal do espaço citoplasmático. Uma das hipóteses sugeridas pelos autores é
que o uso de esteróides ocasionou tais efeitos, assim como ocasionou a retenção
de fluídos, (fato já verifica em animais por APPELL et al, 1983) o que por sua
vez dissolveu as proteínas miofibrilares. É interessante notar que o volume
miofibrilar encontrado nesse estudo é expressivamente baixo em relação às demais
pesquisas feitas (mesmo em pesquisas feitas na mesma Universidade e com os mesmo
autores), mais um fato que gera espanto e impulsiona as conclusões para uma
condição patológica.
A questão da diferenciação de
hipertrofia, desta forma estaria associada a uma condição patológica e não
meramente a uma adaptação corriqueira de treinos diferenciados.
Como a densidade se
mantém constante
A densidade constante dos
componentes protéicos pode estar relacionada também à densidade do número de
núcleos, pois quando uma fibra hipertrofia há um aumento compensatório no número
de núcleos, tendo em vista a aparente necessidade de se manter uma determinada
quantidade de material genético para atender as necessidades da célula (ROLAND
et al, 1999; KADI & THORNELL, 2000). Isto nos leva a especular que o aumento
proporcional de material genético origine uma manutenção da densidade das
organelas em um segundo momento. HUBBARD et al (1975) encontraram um
interessante padrão temporal de hipertrofia em seu estudo:
1) aumento do material genético;
2) aumento das proteínas sarcoplasmáticas (praticamente concomitante com o
anterior)
3) aumento da densidade das proteínas miofibrilares.
O único componente que foge a esta densidade
constante é a mitocôndria tendo em vista sua relativa independência genética e
capacidade autônoma de se multiplicar (há inclusive a suposição que a
mitocôndria seja um ser vivo em simbiose com nossas células).
De onde vem as
adaptações diferenciadas em razão dos diferentes tipos de treino?
A resposta provavelmente reside
nos diversos pontos comprovadamente diferentes entre pessoas treinadas em força
ou resistência e relacionados à performance em tarefas específicas (isto pode
ser verificado de forma mais completa em bons livros e artigos de treinamento),
diante dos quais chega a ser ingênuo atribuir os maiores ganhos de força em
atletas que treinam com repetições baixas a uma alteração morfológica fictícia.
Dentre os fatores já verificados podemos citar os seguintes:
Ganhos de força (ALWAY
et al, 1988; SALE et al, 1983; KAMEN et al, 1983; MILNER-BROWN et al, 1975;
MAUGHAN et al, 2000):
- - Coordenação inter e intra-muscular
- - Bomba de cálcio
- - Atividade da ATPase
- - Velocidade de condução do impulso
nervoso
- - Sincronização de unidades motoras...
Ganhos na resistência (MACDOUGALL et al
,1979; LUTHI et al, 1986; TESCH et al, 1984; MAUGHAN et al,
2000).
- - Volume de mitocôndrias
- - Densidade capilar.
- - Atividade de enzimas oxidativas e
glicolíticas e outras...
Isto obviamente sem falar de
condições genéticas que predispõem um indivíduo a ter maior capacidade de
realizar força em determinados movimentos como: sistema de alavancas favorável
(inserção de tendões, comprimento de membros...), estruturas osteo-articulares
(capacidade de ossos e articulações em suportar carga...), vantangens neurais
(espessura dos axônios, características da bainha de mielina...) e outras. Desta
forma podemos concluir que a diferença entre um fisiculturista e e um
halterofilista, ou entre qualquer outros tipos de atleta de alto nível, não é
somente em decorrência do treinamento, mas também em decorrência de sua
predisposição biológica.
Considerações finais
A divisão de hipertrofia em
dois tipos é um dogma tão antigo e repetido que já é aceito como verdade
absoluta, porém esta visão simplista não encontra fundamentos e em grande parte
de suas bases colide fortemente com as descobertas e conceitos científicos
atuais.
Esta divisão provavelmente era
usada como artifício didático pelos soviéticos, os quais normalmente mostram uma
visão sistêmica do treinamento, porém ao traduzir e transferir estes conceitos
para a cultura ocidental, ele foi acomodado à nossa visão mecanicista e
fragmentada, tornado-se um conceito incrivelmente agradável para o
cartesianismo, porém totalmente contraditório com a visão sistêmica, e sem
embasamento científico. O ser humano parece ter uma enorme propensão a gostar de
explicações fáceis de obter e que ao mesmo tempo aparentam ser difíceis, mesmo
que elas sejam erradas. Distinguir dois tipos de hipertrofia, dando-lhes nomes
complexos certamente soa interessante e "técnico", porém uma mentira repetida
mil vezes não se tornará verdade, por mais bonita e agradável que ela possa
parecer.
Desta forma, até que haja
provas convincentes da fragmentação morfológica da hipertrofia em dois tipos (se
um dia houver), o mais sensato é esquecer este conceito e procurar explicações
comprovadas e convincentes para os treinos.
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